quarta-feira, 22 de maio de 2013

Educação ajuda indústria a sair da crise mais rápido do que se pensa, diz economista da CNI


Um trabalhador brasileiro produz, em média, um quarto do que produz um alemão, operando máquinas de mesmo padrão tecnológico.
A constatação, do economista Rafael Lucchesi, 48, diretor de Educação da CNI (Confederação Nacional da Indústria), mostra que devolver
competitividade à indústria envolve mais esforços do que cortar impostos e aumentar o crédito para a compra de máquinas.

Para ele, é preciso modificar o sistema de ensino e abrir espaço para a formação profissional. Agenda que, na sua avaliação, se tornou tão relevante quanto os programas sociais nos últimos anos.
Zé Carlos Barretta/Folhapress
Rafael Lucchesi, coordenador do Sesi/Senai fala sobre produtividade e inovação na indústria
Rafael Lucchesi, coordenador do Sesi/Senai fala sobre produtividade e inovação na indústria
*
Folha - Economistas atribuem a crise da indústria à menor capacidade de concorrer com importados, resultado da perda de produtividade [medida de eficiência]. Quais são os motivos da baixa eficiência?
Rafael Lucchesi - O diagnóstico está correto. Vários fatores interferem na produtividade, mas o principal deles é o capital humano. Nossa baixa produtividade é resultado direto do padrão educacional do país. Sondagens feitas pela CNI com empresários mostram que grande parte dos problemas é resultado de deficiências [dos funcionários] em raciocínio abstrato, matemática e domínio de línguas.
Como isso se traduz em menor produtividade?
Em uma indústria que trabalha em três turnos, por exemplo, o trabalhador não sabe redigir um relatório de turno. Não sabe ler o manual de operações e não interpreta corretamente um gráfico.
Atualmente, com os processos digitais, se o trabalhador não tem capacidade de interpretação abstrata, ele tem problemas que vão se traduzir no seguinte: uma mesma máquina, com o mesmo padrão tecnológico, é muito mais bem operada por um coreano.
A produtividade do brasileiro é um terço da produtividade de um coreano, um quarto da de um alemão e um quinto da de um americano.
Outra questão diz respeito à nossa matriz educacional. Cerca de 80% dos alunos não vão para a universidade. E o que o sistema educacional dá a esse indivíduo para ir ao mercado de trabalho? Uma má formação em português, em matemática e em ciência. Dá para exigir mais do nosso sistema educacional.
O que seria exigir mais?
Hoje no Brasil só 6,6% dos jovens de 15 a 19 anos fazem educação regular junto com educação profissional. Esse número na Alemanha está acima de 50%, a média da OCDE [grupo de países mais ricos] está acima de 40%.
Ensino técnico é bom para a indústria...
Para o país, você dá mais competitividade para a indústria. Para a juventude, você dá uma oportunidade de ingressar mais cedo no mercado de trabalho e ter uma profissão estável e que pode, inclusive, permitir uma ascensão profissional e a continuidade dos estudos.
Dessa forma, a gente cria um modelo diferente do atual, em que temos uma pedagogia formada como se todo mundo fosse para a universidade. E não vai.
Precisamos que a estrutura educacional se ajuste às necessidades da sociedade.
O Brasil está experimentando uma transformação demográfica acelerada, a taxa de natalidade está caindo rapidamente. Parte dos nossos ganhos de produtividade estava associada ao ingresso de jovens no mercado de trabalho. Nosso sistema educacional perdia muita gente, mas em um país
de jovens não era problema.

Isso não vai voltar a acontecer com a mesma intensidade. Com a fila se escasseando, não podemos nos dar ao luxo de perder tanto. Então é importante que preparemos melhor quem vai ingressar no mercado de trabalho.
Pode resolver o futuro. Mas a crise da indústria é presente.
A velocidade [de mudança] é um pouco mais rápida do que se imagina. A diferença dos sistemas educacionais é como dois prédios. Na educação regular, você entra no primeiro andar, no ensino fundamental, e só tem uma profissão quando concluir a graduação, 17 andares acima.
Na educação profissional, é diferente. Se você faz um curso de formação inicial, de 200 horas, pode ter resultado de melhor produtividade desde o primeiro curso, ou do primeiro andar desse prédio. Então, os resultados são mais rápidos e efetivos.
Mas qual a proposta prática?
Aumentar os cursos técnicos é um passo. O outro é destravar a educação regular.
Nos últimos anos, o governo teve uma agenda importante dos programas sociais. A educação profissional cria uma agenda de cidadania, de formação de indivíduos e aumenta a produtividade da indústria. É a continuidade de uma agenda promotora do capital humano. Sobretudo para a juventude, pois permite a inserção produtiva e atende à necessidade de dar perspectiva para quem não vai para a universidade.
Grande parte do abandono do estudo ocorre porque os jovens do ensino médio não veem relação entre o que estão aprendendo e a vida. Estão aprendendo física, química e o pai dando esporro porque é improdutivo em casa. Ele não vai para a universidade porque não tem grana para entrar em uma particular e não tem estudo para entrar numa pública. Então, o que ele vai fazer? Vai trabalhar de balconista, no lava-jato...
A falta de inovação é outra lacuna da indústria e o esforço do governo e da CNI foi criar a Embrapii (Empresa de Pesquisa e Inovação Industrial). Por que criar uma estatal?
A Embrapii não é uma estatal, é um fundo que vai certificar instituições de pesquisa com pessoal qualificado, equipamentos e um plano de atendimento a empresas.
Colocar recursos em pesquisa na universidade, acreditando que vai virar inovação... toda a literatura diz que isso é ineficiente. Você melhora se o centro se desloca para o que a empresa precisa. Ela vai aportar recursos e não joga dinheiro fora.
Se pegarmos os principais fatores para impulsionar a competitividade, não vamos ver grandes mudanças na orientação macroeconômica, nas relações do trabalho, no marco legal e jurídico.
Em inovação e em educação é onde podemos responder a essa questão.

Como tornar a cobrança de impostos mais justa?


Com um Congresso dominado por políticos ricos e de origem empresarial e um governo que não ousa comprar briga com seus (teóricos) aliados, que são a grande maioria dos parlamentares, a proposta de tornar um pouco mais justa a cobrança de impostos ganhará as ruas em busca de apoio. O objetivo é coletar 1,5 milhão de assinaturas para carimbar um projeto de mudança no imposto de renda como sendo “de iniciativa popular”, para tentar constranger deputados e senadores a votá-lo.
O projeto corrige a tabela do imposto de renda da pessoa física, que acumula perdas de 50% desde 1996, cria dispositivos para evitar defasagens por dez anos, aumenta de 3 mil para 12 mil reais o que pode ser deduzido de gasto com educação e ressuscita deduções com aluguel e juros da casa própria, abandonadas em 1988. Também propõe que os sócios de uma empresa paguem, como pessoas físicas, IR sobre o que recebem de dividendo (estão isentos desde 1996) e retoma a taxação de 15% sobre as remessas de lucros ao exterior, igualmente isentas há 17 anos.
O projeto é obra do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), que na terça-feira 21 lançou a campanha de coleta de assinaturas em ato na Câmara dos Deputados. Pela legislação, é preciso reunir ao menos 1,5 milhão de assinaturas para que um projeto seja protocolado na Câmara com o rótulo “de iniciativa popular”.
Segundo o Sindifisco, se todas as mudanças propostas fossem aprovadas, o Brasil promoveria 180 bilhões de reais em justiça tributária ao longo de dez anos. Ou seja, até 2024, os mais pobres deixariam de pagar 180 bilhões de reais em tributos, enquanto os mais ricos seriam taxados adicionalmente naquela mesma quantia.
O sistema tributário nacional caracteriza-se pela regressividade. A maior parte da taxação recai sobre o consumo - pior para os mais pobres, sem condições de poupar, ao contrário dos mais ricos. Um estudo de janeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) feito por três econômistas brasileiros, entre eles José Roberto Afonso, ex-colaborador do governo Fernando Henrique, diz que o consumo representa 45% da arrecadação no Brasil e a renda, apenas 19%. No mundo rico, essas proporções são 29% e 38%, respectivamente. Veja a íntegra do estudo: http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=37434330
O presidente do Sindifisco, Pedro Delarue, disse a CartaCapital que acredita ser muito complicado mudar esse quadro por causa dos “interesses envolvidos” e do predomínio “poder econômico” dentro do Congresso, aonde dificilmente se chega sem financiamento empresarial nas eleições. Segundo ele, também “não dá para contar com o governo”, que depende do Legislativo para tocar o dia a dia. Eis a razão da tentativa de emplcar um projeto de iniciativa popular.
Nesta campanha, o Sindifisco vai distribuir à população uma cartilha explicando como o a tributação no País é injusta e fazer circular na internet um vídeo sobre a situação.

Na contramão da política de juros, governo anuncia gasto recorde


Enquanto o Banco Central eleva juros para esfriar a economia e conter a inflação, a Fazenda e o Planejamento anunciam mais gastos públicos para estimular o consumo e o investimento.
Finalmente anunciadas hoje, perto da metade do ano, as metas para as contas do Tesouro Nacional sinalizam despesas recordes --que podem aumentar ainda mais até dezembro.
O afrouxamento fiscal começa pela redução do montante a ser poupado para o abatimento da dívida pública, ou superavit primário.

Em vez dos R$ 108,1 bilhões planejados no início da elaboração do Orçamento de 2013, o objetivo passou a R$ 63,1 bilhões.
Com a medida, os gastos com pessoal, custeio administrativo, programas sociais e investimentos subirão de R$ 805 bilhões, no ano passado, para R$ 938 bilhões, ou de 18,3% para 19,2% do Produto Interno Bruto (PIB), maior patamar da história.
O governo, no entanto, criou brechas legais que, no limite, permitem reduzir o superavit a R$ 42,9 bilhões e elevar as despesas totais a R$ 948 bilhões.
Graças às metas menos ambiciosas, a equipe econômica pôde reduzir o tradicional ajuste anual na lei orçamentária aprovada pelo Congresso.
Nos dois primeiros anos de mandato da presidente Dilma Rousseff, houve bloqueios preventivos de despesas na casa dos R$ 50 bilhões. Agora, o valor caiu para R$ 28 bilhões.
INFLAÇÃO
A expansão do gasto público, acelerada no ano passado, tem sido apontada pelo Banco Central como um dos motivos para a alta da inflação.
Quando o governo eleva salários, benefícios sociais, compras e obras, a demanda por bens e serviços no país cresce mais rapidamente que a oferta, pressionando os preços para cima.
Até aqui, o Banco Central tem fixado os juros com base em uma estimativa oficial de superavit primário de União, Estados e municípios equivalente a 3,1% do PIB.
As metas fiscais anunciadas hoje, no entanto, apontam para um superavit de 2,3% do PIB, e com tendência de queda.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

As origens do vício

Segundo especialista, sociedade reprime e encarcera seus dependentes para evitar que outros sigam seu exemplo

Nascido na Hungria, numa família judia, durante a ocupação nazista, o médico canadense Gabor Maté é um sobrevivente do Holocausto. Seus avós maternos foram mortos em Auschwitz, e ele passou seu primeiro ano de vida em um gueto.
Décadas depois, radicado no Canadá, teve de lidar com sua própria tendência para comportamentos compulsivos – trabalho e compras eram suas drogas favoritas – e foi diagnosticado com transtorno de déficit de atenção (TDA). Médico especializado no estudo e tratamento de vícios e TDA, Maté compreende esses distúrbios como “sintomas” de problemas anteriores, gerados por condições sociais e psicológicas, que influenciam o desenvolvimento cerebral. Teórico reconhecido internacionalmente, com grande experiência no tratamento de dependentes, é autor de quatro livros sobre seus temas de pesquisa, um deles, “Pais Ocupados, Filhos Distantes”, foi publicado no Brasil pela Melhoramentos.
Em seu último livro, “In The Realm of Hungry Ghosts:  Close Encounters With Addiction” (No reino dos fantasmas famintos: contatos Imediatos com o vício) e nesta entrevista, Maté joga luzes sobre a questão dependência de drogas que podem ajudar a esclarecer problemas e políticas públicas que o Estado brasileiro se propõe a enfrentar e implementar.
CartaCapital: Quais são os principais “mitos” que dificultam a compreensão do fenômeno do vício?
Gabor Maté: Em geral, a sociedade vê o vício de duas formas predominantes. Numa dessas interpretações, o vício é um escolha que as pessoas fazem, simplesmente uma má decisão individual. O que a sociedade tende a fazer, nesse caso, é criminalizar essa “escolha errada”. Reprimindo e encarcerando os dependentes de drogas ilícitas, a sociedade os pune por seu suposto erro e tenta evitar que outros sigam seu exemplo. A segunda visão mais comum sobre o vício é a da predisposição genética, algo que as pessoas herdam de seus pais, uma característica biológica que as constitui desde a concepção. As duas explicações têm uma importante característica em comum: a ausência da dimensão social do problema. Nós, humanos, somos seres “bio-psico-sociais”. As condições psicológicas e sociais da nossa existência são decisivas para a realização e a modulação dos nossos potenciais biológicos. O ambiente e as relações sociais moldam a nossa biologia, especialmente o desenvolvimento cerebral. Cada cérebro humano é, em larga medida, um produto das relações psicossociais do indivíduo, sobretudo das relações mantidas e experiências vividas durante os primeiros anos de vida.
CC: Existe, então, uma “neurologia do vício” produzida por condições psicológicas e sociais durante a infância?

GM: Frequentemente, sim. Hoje sabemos que o desenvolvimento de circuitos cerebrais relacionados aos incentivos e à motivação, ao prazer, ao alívio da dor e ao amor – ativados pelos neurotransmissores dopamina e endorfina –, assim como dos circuitos que regulam nossos níveis de estresse e de intensidade emocional, depende muito das condições sociais, afetivas e cognitivas da primeira infância, especialmente dos primeiros três anos de vida, e até mesmo dos níveis de estresse da mãe durante a gravidez. Podemos comparar as variações no desenvolvimento desses circuitos neuronais ao trajeto de um rio. Quanto mais perto da nascente se coloca um obstáculo, maior a mudança no curso do rio. Quanto mais cedo a criança é submetida a altos níveis de estresse, indiferença, solidão, violência, maiores os prejuízos para o desenvolvimento desses circuitos, cujo mal funcionamento predispõe a problemas físicos e mentais, e ao vício.
CC: Há evidências científicas do impacto dessas experiências traumáticas na infância, o desenvolvimento cerebral e o vício?

GM: Quem trabalha com dependentes químicos acolhendo-os e escutando-os sabe que trauma e abusos na infância são uma constante em suas histórias de vida. E há, sim, fartas evidências científicas dessas relações de causalidade. Vou dar alguns exemplos. Filhotes de rato que não são lambidos por suas mães logo depois do parto têm seu desenvolvimento cerebral prejudicado. Como o acolhimento do humano recém-nascido pela mãe, para os ratos as lambidas pós-parto são, sobretudo, um ritual de vínculo. Dura só alguns minutos e tem efeitos para toda a vida. Nos humanos, alguns traumas precoces têm impactos tão importantes na química e estrutura do cérebro que é possível, por exemplo, identificar vítimas de abuso sexual na infância por meio de exames de mapeamento cerebral realizados décadas mais tarde. Meninas de quatro anos de idade com alto nível de estresse (medido pela quantidade de cortisol na saliva) chegam aos 18 com os mesmos tipos de alteração cerebral, também identificáveis por exames de imagem. Apenas analisando o eletroencefalograma de um bebê é possível saber se sua mãe está sofrendo de depressão. Filhotes de macaco separados das mães sofrem rápidas quedas de seus níveis de dopamina, hormônio da motivação. Cobaias geneticamente manipuladas para não desenvolver receptores de dopamina se alimentam quando recebem comida diretamente na boca, mas, se a comida é deixada a centímetros de distância, elas não tem motivação suficiente para se mover e comer, e morrem de fome. Para o desenvolvimento satisfatório dos circuitos da dopamina, os mamíferos, e sobretudo humanos, precisam de contato e laços sociais, suporte emocional, em ambientes suficientemente seguros e tranquilos. A mesma dopamina tem papel fundamental na química de muitos vícios.
CC: Seria correto, portanto, dizer que o vício é uma forma de tentar compensar deficiências neurológicas preexistentes?
GM: Sim, seria. Defino “vício” como qualquer comportamento – associado ou não a uma substância química – que dá prazer e alívio temporários, trás efeitos negativos a longo prazo e a pessoa não consegue largar. Pessoas que tiveram experiências traumáticas precoces frequentemente convivem com sofrimento, com dor emocional constante. De maneira geral, a dependência química se origina numa busca de motivação, prazer ou alívio de sofrimento que a pessoa não consegue sem a droga. Trata-se, na verdade, de automedicação. Quem recorre constantemente a cafeína, nicotina, cocaína, crack ou metanfetamina, por exemplo, está tentando aumentando seus níveis de dopamina. O problema é que, em geral, essa automedicação não resolve o problema, e, em muitos casos, tem graves efeitos colaterais. No caso da metanfetamina, por exemplo, o aumento dos níveis de dopamina é tão grande que faz com que o cérebro se proteja reduzindo o número de receptores de dopamina, reforçando a necessidade de mais dopamina, fechando o círculo vicioso. Se a pessoa para repentinamente de tomar a droga, seus níveis de dopamina ficam extremamente baixos e ela cai em depressão. O vício não é uma escolha moral errada nem resultado de determinação genética, é o sintoma de um problema anterior – o trauma e a dor que ele produz – e, ao mesmo tempo, uma tentativa de aliviar essa dor. Não é à toa que a maioria das drogas relacionadas ao vício, inclusive o álcool, são anestésicas.
CC: Como ficam essas pessoas no contexto da Guerra às Drogas?
GM: Como não é possível enfrentar objetos inanimados nos campos de batalhas, a guerra é feita contra usuários de drogas e, sobretudo, contra os dependentes. Agora imagine o resultado de políticas que marginalizam, criminalizam e punem pessoas cujo problema fundamental é o excesso de dor e sofrimento. Qual é a racionalidade disso? Claro que não funciona. O que se produz é a continuidade de experiências traumáticas, que são as causas do vício. O problema dos dependentes e da sociedade só se agrava. Eu conheci um dedicado policial em Toronto, no Canadá, que trabalhava no combate à exploração de crianças pelo mercado criminoso de pedofilia online. Ele me contou que a pior parte do trabalho era ver a expressão das crianças nos vídeos pornográficos. “Os olhos delas estão mortos”, ele me disse. É claro, quando o fluxo emocional é doloroso demais, insuportável, a desconexão profunda é o único jeito de sobreviver. Eu lhe disse que a terrível ironia da situação era que, se futuramente ele fosse transferido do departamento de combate a crimes sexuais para o de combate às drogas ilícitas, iria ter de perseguir e prender as mesmas pessoas que tanto havia se esforçado para proteger. Com a minha experiência profissional, eu podia lhe garantir que grande parte das crianças violentadas se tornaria dependente de drogas pesadas. É isso que as políticas de drogas baseadas na criminalização e repressão fazem: perseguem e punem gente que está tentando anestesiar a dor que sente.
CC: Qual é, então, a melhor alternativa?

GM: A boa notícia é que é possível romper o círculo vicioso de dor, vício, marginalização, repressão, violência, mais dor e mais vício. Com acolhimento, respeito, contato, afeto, tratamento baseado em evidências científicas, as pessoas melhoram e muitas conseguem largar o vício. Mesmo as mais traumatizadas, e em qualquer idade. Mas para isso é preciso realmente se guiar pelo conhecimento científico e pelas evidências empíricas. Nada do que eu lhe disse é controverso entre os verdadeiros especialistas, aqueles que estão realmente gerando conhecimento relevante sobre o assunto atualmente. Mas muitos médicos, infelizmente, reproduzem visões preconceituosas e mal informadas. E não só os médicos, também os sistemas judiciário e carcerário – e, em alguns aspectos, a economia e a sociedade em geral – parecem desenhados para produzir e multiplicar vícios e pessoas que precisam recorrer constante e compulsivamente a alívios temporários. Pode ser sexo, internet, compras, jogos, exercícios físicos, trabalho, dinheiro ou heroína. Muitos desses vícios não são apenas tolerados, mas admirados, cultuados, fomentados... Enquanto outros são criminalizados.
CC: Qual é a sua opinião sobre as mudanças na legislação brasileira sobre drogas ilícitas que estão sendo discutidas no Congresso Nacional, especialmente no que tange ao aumento da pena mínima para o tráfico e à internação forçada de dependentes?

GM: Acho um equívoco enorme, na contramão do conhecimento científico e das melhores experiências internacionais. Se implementadas, essas medidas agravarão o problema. O Brasil é um grande país, que tem avançado em vários aspectos. Mas, neste momento e nesse campo, não oferece um bom exemplo para o mundo. Acho muito interessante como os chamados “países cristãos”, como os EUA e o Brasil, desprezam os ensinamentos do mestre que dizem seguir. Jesus não disse “não julgue para não ser julgado” e “antes de querer tirar o cisco do olho do seu irmão, preocupe-se com a tora no próprio olho”? Eu acho que deveríamos levar o cristianismo a sério. Para citar outro mestre, quando questionado sobre o que achava da civilização ocidental, Gandhi respondeu: “acho que seria uma ótima ideia”. Eu diria o mesmo do cristianismo. Seria uma excelente ideia.

Fonte:  http://www.cartacapital.com.br/sociedade/as-origens-do-vicio

“Brasil virou gente grande e precisa ser mais ousado”

 
Porto Alegre - “O Brasil está vivendo um momento especial, venceu o complexo de vira-latas, virou gente grande e tem que ser mais ousado em sua política externa. O país deveria estar no G7, pois já é a sexta economia do mundo. Não está porque o G7 é uma confraria. O Brasil precisa disputar em todas as partes do mundo. Tem que ir entrando e conquistando espaço. Precisamos oferecer à África e à América Latina uma perspectiva não-colonizadora. Para isso, temos que ajudar a financiar as economias menores. Se não fizermos, os chineses, os americanos e os europeus o farão”. Essa é a síntese da proposta apresentada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nesta terça-feira (14), em Porto Alegre, durante reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio Grande do Sul (CDES-RS).

A intervenção de Lula foi uma defesa veemente da necessidade de o Brasil ter uma política externa mais ousada. Após elogiar a iniciativa do governador Tarso Genro de realizar uma série de missões internacionais para, entre outras coisas, abrir novos mercados para empresas gaúchas e atrair investimentos para o Estado, Lula relatou um pouco do que foi a política externa em seu governo e defendeu o fortalecimento da presença do Brasil no mundo. Falando sobre as viagens que fez em seu governo, o ex-presidente lembrou que recebeu muitas críticas quando decidiu começar a visitar a África e quando rejeitou, junto com outros presidentes da região, a proposta da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) em favor do fortalecimento do projeto do Mercado Comum Sulamericano (Mercosul) e, mais tarde, da União Sulamericana de Nações (Unasul).

Empresário defende missões internacionais

Lula defendeu que o governo gaúcho deve aprofundar essa política, recordando um episódio de seu governo: “Nós gastamos cerca de 500 mil dólares para fazer uma feira em Dubai. Recebemos muitas críticas de gente que dizia que estávamos jogando dinheiro fora. No outro dia dessa feira, empresas brasileiras venderam 50 milhões de calçados. E os críticos não disseram nada sobre isso”.

O empresário gaúcho Paulo Tigre, integrante do CDES-RS, defendeu a posição de Lula e a política de missões internacionais implementada pelo governo estadual. “Alguns negócios levam anos para sair. Para que isso ocorra, é muito importante abrir esse diálogo entre governos e empresas”, afirmou. Na mesma linha, Tarso Genro defendeu enfaticamente a política de seu governo: “Superamos uma visão paroquial da política marcada pelo complexo de vira-latas. Algumas pessoas ainda acham mais importante ficar perguntando quanto custa cada missão, ignorando por completo os benefícios que trazem para o Estado no médio e longo prazo”.

Aumento de poder e de responsabilidade

“Quando iniciei meu governo, a nossa balança comercial com a Argentina era de apenas 7 bilhões de dólares. No final, era de 39 bilhões”, destacou Lula. Ele defendeu ainda que o Brasil, na condição de maior país e maior economia da região, tem que ser mais generoso e querer que seus vizinhos cresçam também. “Por isso, quando deixei o governo, nosso principal parceiro comercial era a América Latina e não os Estados Unidos ou a União Europeia”.

Hoje, acrescentou, o desafio colocado para nossos governantes e empresários é maior. “Ganhamos as direções da FAO e da OMC e as nossas responsabilidades aumentaram muito. Na hora em que nos tornamos grandes não podemos nos comportar da mesma maneira”, emendou ao justificar a defesa de mais ousadia na política internacional brasileira.

Lula contextualizou essa necessidade fazendo um diagnóstico da crise financeira e econômica internacional, iniciada em 2008. “Essa crise, que ainda não terminou, é resultado de uma crise política maior. Ela poderia ter sido resolvida entre 2008 e 2009. Só não foi por falta de dirigentes políticos capazes de decidir. Cerca de 9,5 trilhões de dólares já foram gastos para enfrentar a crise sem resolver o problema. Na Europa, agravou-se o problema do desemprego. A economia está dando sinais de recuperação nos Estados Unidos porque Obama está querendo reindustrializar o país. Por outro lado, os Estados Unidos gastaram cerca de 3 trilhões de dólares, só na guerra no Iraque. Imaginem quantos programas como o Bolsa Família ou o Luz para Todos poderiam ser financiados na África com esses recursos”. Diante deste cenário, o ex-presidente pediu maior protagonismo dos governantes e empresários brasileiros em todas as partes do mundo.

A diplomacia do mascate

“Tem que jogar o jogo e, para isso, é preciso disputar, é preciso viajar e se reunir com representantes de outros países. Se não fizermos isso, podem ter certeza que a China, a Índia e outros países o farão”. Lula lembrou também as tentativas dos Estados Unidos de recuperar espaço perdido na região com propostas de tratados de livre comércio bilaterais (como o que está sendo discutido com a Colômbia) e do Pacto do Pacífico, querendo afastar os países dessa região da área de influência do Brasil e dos projetos de integração sulamericanos. “Os Estados Unidos precisam olhar o Brasil como parceiro e não como adversário. Eles querem afastar países como Equador, Colômbia, Peru e Chile da América do Sul. Ao mesmo tempo, querem fazer o Pacto do Atlântico. Essa é outra razão pela qual o Brasil precia ser mais ousado”, reforçou Lula, acrescentando, de modo enfático:

“O país tem que fazer política externa como se fosse um mascate, precisa mapear cada país e ver onde há complementariedades e onde o Brasil pode colocar seus produtos. Precisamos pegar tudo o que o Brasil produz e mostrar ao mundo. E temos que fazer isso propondo sociedades e parcerias, não querendo sufocar os países menores”.

Lula destacou também, como condição necessária para o sucesso dessa política externa, a necessidade de o Brasil manter sólidas relações com a Argentina. “A Argentina e o Brasil tem que compreender que um país precisa do outro. Se as relações entre Argentina e Brasil estiverem bem, o Mercosul e a Unasul estarão bem. Se não estiverem, esses projetos de integração ficam enfraquecidos”. Além disso, reforçou outro de seus temas prediletos nos últimos anos, que é a defesa do aprofundamento das relações do Brasil com a África. “O Oceano Atlântico não é nenhum empecilho para o Brasil”, ironizou. “Erroneamente, muita gente ainda pensa que a África é um continente de miseráveis. A democracia na África está se consolidando em quase todos os países. A Nigéria é um país que tem 170 milhões de habitantes e tem só 4.500 megawatts de energia. Ou colocamos nosso pé lá ou outros colocarão”, acrescentou o ex-presidente, lembrando da forte e crescente presença da China nesta região.

A metáfora do mascate empregada por Lula falar de sua proposta para a política externa brasileira não a reduz a uma dimensão meramente comercial. Ele acredita que essa é também uma solução política para a crise. “Em 2008, recebi muitas críticas quando falei que a crise seria uma marolinha e pedi à população para que consumisse. E a economia do país resistiu bem à crise, ao contrário do que aconteceu em outros países”. Lula defende que uma das medidas para enfrentar a crise política e econômica internacional é mais comercial, lembrando que os debates na Organização Mundial do Comércio estão congelados há quatro anos. E agora, um brasileiro estará na direção da OMC, o que não é um detalhe menor, lembrou.

Precisamos revisar os manuais. A política exige mais velocidade, precisamos inovar no comportamento, inovar na atitude”.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22046