Nada
será como antes, amanhã...
Nesse quadro
de instabilidade, não há espaço para vacilos esquerdistas e
voluntaristas, considerando uma correlação de forças desfavorável.
Apesar do aumento
da taxa de juros, Dilma não capitulou, tampouco está paralisada.
Joaquim Levy não será o Czar da economia e além da
aplicação de medidas econômicas anticíclicas, como injetar R$ 30
bilhões no BNDES e reduzir os encargos financeiros da dívida dos
estados e dos municípios, uma das suas primeiras iniciativas foi
sentar com as centrais sindicais para definir uma pauta de negociação
entre o governo e os trabalhadores.
Agora, considerando que se
trata de um governo em disputa, o bloco histórico progressista deve
construir os pressupostos econômicos, políticos e ideológicos para
abrir um novo ciclo de desenvolvimento e para criar janelas de
oportunidade no quadro das transformações que ocorrem no
mundo.
Para unificar e para combinar as ações deste bloco no
Estado e na sociedade, precisamos avançar nos planos teórico e
estratégico em direção ao alargamento da democracia, à redução
da desigualdade, à superação da dependência e à afirmação da
ética pública, bem como precisamos enfrentar quatro grandes
desafios no plano tático:
(i) derrotar a tentativa de
impeachment articulada pela oposição no contexto das denúncias
seletivas da operação lava jato;
(ii) consolidar uma frente
ampla política e eleitoral, ensaiada no segundo turno das eleições
presidenciais, para lutar pela reforma política que vete o
financiamento empresarial de campanha e pela democratização da
mídia;
(iii) superar o reducionismo do tripé macroeconômico
(sistema de meta de inflação, superávit primário e câmbio
flutuante);
(iv) abrir um novo ciclo de desenvolvimento
assentado no pré-sal, na industrialização, no dinamismo do mercado
interno e externo, na universalização das políticas sociais e na
sustentabilidade ambiental.
Seu objetivo central deve ser a
melhoria da qualidade de vida material e cultural da juventude, dos
trabalhadores e dos cidadãos brasileiros.
Primeira
análise
O governo Dilma continua em disputa.
Com
toda energia, devemos criar uma frente ampla política e eleitoral
para construir pressupostos que permitam o governo abrir um novo
ciclo de desenvolvimento.
O PT, os partidos do campo
democrático, popular e socialista, os setores progressistas do PMDB,
do PSB e do PROS, as centrais sindicais, os movimentos sociais e as
universidades têm uma responsabilidade gigantesca na atual
conjuntura histórica.
A frente tem a dupla tarefa de
sustentar o governo contra a direita e de pressionar o governo para
avançar à esquerda, mas as condições são muito piores do que há
12 anos.
Por exemplo, a diferença eleitoral em favor do PT
nas eleições presidenciais caiu de 22% dos votos validos em 2002
para 3,3% em 2014 e as bancadas sindical e social perderam 50% de
seus parlamentares.
Dilma precisa de apoio popular em torno da
reforma política e da democratização da mídia para enfrentar as
contradições da sociedade brasileira – a reforma agrária, a
reforma urbana e a melhoria da mobilidade urbana estão na boca do
povo –, mas esse congresso é o mais conservador desde a
redemocratização.
Dada essa correlação de forças no
Estado, ela precisa mediar na economia para garantir a
governabilidade, mas isso não significa que ela adotou o programa
econômico recessivo dos tucanos.
O novo ministro da fazenda
sinalizou que a meta do superávit primário será de 1,2% do PIB em
2015, o menor dos últimos 17 anos. Ou seja, o ajuste fiscal será
feito de forma gradual para preservar os avanços sociais dos últimos
12 anos.
Além do mais, com a desnacionalização da economia
promovida pelo PSDB entre 1994 e 2002, as restrições internacionais
passaram a constranger o espaço para as políticas redistributivas e
para ampliação do mercado interno, tornando necessária a aprovação
de medidas anticíclicas – como a flexibilização da meta do
superávit em 2014 – para garantir o emprego, manter o salário e
fomentar o investimento em infraestrutura.
Um ajuste fiscal
moderado e a aprovação de pontos da reforma tributária serão
insuficientes para atender as reivindicações da nossa base social,
mas podem acelerar a retomada do crescimento e sustentar a âncora
salarial, caso não se perca de vista a redução do estoque da
dívida pública e o alongamento de seus encargos financeiros para
sedimentar o caminho da universalização das políticas sociais.
A
construção de uma frente ampla política e eleitoral
Na
atual conjuntura, devemos combinar uma tática defensiva no Estado
(economia) com uma estratégia contraofensiva na sociedade (política,
ideológica e organizativa).
Com apoio da mídia, os
conservadores cresceram nas últimas eleições e produziram uma
direita avessa ao jogo democrático. Ora a oposição assopra,
pressionando Dilma para aplicar o programa dos tucanos, ora a
oposição morde, apostando no impeachment e na destruição do
PT.
Nesse quadro de instabilidade, não há espaço para
vacilos esquerdistas e voluntaristas, considerando uma correlação
de forças desfavorável no Estado e as debilidades da esquerda, dos
setores populares e do próprio projeto socialista na sociedade.
Podemos resistir à ofensiva udenista e suas ameaças de
blackout. Podemos mudar esse quadro e fazer um governo reformista,
mas Dilma, Lula e o PT não fecharam seus olhos para essa fragilidade
no campo institucional.
Com base no programa disputado nas
urnas, procuram fortalecer a aliança com o PMDB, refrear o centro e
dividir a direita e a própria reforma ministerial levará em conta a
necessidade de realizar um presidencialismo de coalizão pressionado
e chantageado por um congresso fisiológico.
Do lado da
frente, o pulo do gato é compreender que a capacidade de negar e de
superar a tática defensiva no campo econômico dentro do Estado
reside na sustentação e na pressão dos partidos, das burocracias,
das centrais sindicais, dos movimentos sociais e dos estudantes
alinhados ao campo democrático, popular e socialista.
Do lado
do Estado, o problema é compreender que, a depender do tamanho do
aperto monetário e do ajuste fiscal diante da pressão do capital
financeiro nacional e internacional, a estratégia contraofensiva
política, ideológica e organizativa dos setores progressistas pode
se desmobilizar, minando sua governabilidade popular, bem como sua
margem de manobra para criar um novo ciclo de desenvolvimento.
O
PT tem a responsabilidade de fazer essa mediação, cumprindo um
papel importante nas negociações da frente ampla com o governo
Dilma. No seu V Congresso, o próprio partido deve fazer um balanço
da sua crise de hegemonia, em sentido democrático e socialista, para
debater o “reformismo fraco” do lulismo e fazer uma autocrítica
de seus erros nos últimos 12 anos. Se necessário deve promover
mudanças substantivas em sua direção política e no tipo de
construção e organização partidárias para combater o antipetismo
no parlamento, na rua e na internet.
O momento é histórico e
exige grandeza e unidade para atrair a base aliada à Marina Silva e
os descontentes com o sistema de representação política do campo
da esquerda. Para contrabalançar a correlação de forças, será
decisiva a consolidação desta frente em torno da reforma política
e da democratização da mídia, fortalecendo a capacidade política
e ideológica do governo para abrir um novo ciclo de
desenvolvimento.
Diferenças existem e devem ser demarcadas e
respeitadas, sem sectarismo dentro da frente e em sua relação com o
governo. Será um processo cheio de lutas, tensões e negociações,
contudo a frente política progressista tem a dupla tarefa de
sustentar o governo contra a direita e de pressioná-lo no avanço à
esquerda, apostando na organização, conscientização e mobilização
da juventude, dos trabalhadores e dos cidadãos, ora mediando, ora
avançando no curso da luta de classes e da disputa de hegemonia,
dentro e fora do Estado.
Tripé macroeconômico superado:
um novo ciclo de desenvolvimento
No campo socialista,
somos críticos ao estalinismo e ao social-liberalismo – esse
último apoiado na macroeconomia do “socialismo neoliberal” dos
anos 80/90.
Diante da crise internacional, o recuo
social-liberal na política econômica (Estado) não deve impedir que
o bloco histórico progressista (sociedade) debata os erros e os
acertos do neodesenvolvimentismo petista, bem como discuta a
necessidade de negação e de superação do tripé macroeconômico
(meta de inflação, superávit primário e câmbio flutuante) como
pré-condição para o governo abrir um novo ciclo de
desenvolvimento.
Dos 46 bancos centrais que estabeleceram
metas de inflação, 30 estão abaixo da meta, preocupados agora com
os efeitos devastadores da deflação na Europa. O consenso dos
analistas, não necessariamente de esquerda, é que a zona do euro
precisa reestruturar a dívida para ampliar os investimentos
públicos, renegociando o principal e os períodos de carência,
reescalonando os encargos financeiros e, se constatada
irregularidades, anulando parcialmente a dívida.
No Brasil,
aplicar um ajuste fiscal gradual para reduzir inflação a fim de
baixar juros e tornar o câmbio competitivo deve, também, pressupor
a redução e o alongamento do estoque da dívida pública no longo
prazo. O próprio FHC, em entrevista concedida à revista Primeira
Leitura, em julho 2004, defendia que o Brasil lidasse com a dívida
interna de outra maneira.
Como nos ensinou Kalecki, sozinhos,
dificilmente os capitalistas garantirão o pleno emprego no longo
prazo. Hoje, sem dúvida a retomada do crescimento depende da
ampliação do investimento privado e público, sendo decisiva a ação
dos governos, bancos públicos e fundos de pensão institucionais,
para permitir o reposicionamento da indústria nas cadeias globais do
mercado externo e para reduzir o déficit da balança de
pagamentos.
De qualquer forma, esse exame precisa ser
aprofundado por todos os aliados do governo Dilma, pois a crítica ao
tripé macroeconômico poderá ter desdobramentos teóricos e
estratégicos significativos para criação de um novo ciclo de
desenvolvimento assentado no pré-sal, na industrialização, no
dinamismo do mercado interno e externo, na universalização das
políticas sociais e na sustentabilidade ambiental.
Nesse
sentido, uma opção seria atualizar e adaptar o modelo sueco de
pleno emprego, considerado um paradigma para os críticos da
experiência soviética (estalinista) e estadunidense (liberal);
outra opção seria olhar para a própria experiência da esquerda
latino-americana reformista e revolucionária.
Mas seja no
modelo keynesiano, seja no modelo de capitalismo de Estado, uma vez
fortalecido o padrão de financiamento público e a formação bruta
de capital fixo, a âncora salarial (carteira assinada, renda e
crédito no mercado interno) e os direitos sociais serão duas pedras
fundamentais para arquitetura desse novo ciclo de
desenvolvimento.
Em particular, a universalização das
políticas sociais tem um potencial transformador civilizatório nos
países da periferia capitalista. Em nosso caso, a depender da sua
extensão e da sua profundidade, pode permitir com mais rapidez a
consolidação da posição política da frente ampla progressista no
Estado em várias dimensões, a saber: construir uma ética pública
e solidária na sociedade; desprivatizar o Estado, democratizando o
acesso ao fundo público; atacar a pobreza, a desigualdade, os baixos
níveis educacionais e culturais e a violência social nas
metrópoles; produzir renda, produto, emprego e inovação
tecnológica; aumentar a produtividade da força de trabalho e
reduzir o índice de inflação do setor de serviços.
Sinônimo
de democracia e de uma “economia de mercado socialmente regulada”
(termo cunhado pela socialdemocracia alemã antes da ascensão do
nazismo), esse ciclo pode garantir crescimento econômico, sem
descuidar da soberania brasileira na nova geopolítica mundial,
visando à melhoria da qualidade de vida material e cultural da
juventude, dos trabalhadores e dos cidadãos brasileiros.
Nada
será como antes para a esquerda brasileira, que deve repensar suas
divisões e seus romantismos, na crítica dialética do seu
“horizonte de expectativa”. A vitória de Dilma foi uma vitória
contra o retrocesso, saudada em toda América Latina. Se quisermos
avançar, unidade é a palavra-chave para superar a tática defensiva
no Estado (economia) e para avançar concretamente na estratégia
contraofensiva na sociedade (política, ideológica e organizativa),
fortalecendo o governo em sua promessa de mudar para melhor a
qualidade de vida dos brasileiros.
(*) Carlos Ocké
é economista e membro do conselho consultivo do Centro Brasileiro de
Estudos da Saúde (Cebes).
http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Nada-sera-como-antes-amanha-/4/32441