O demônio não é o agronegócio
Particularizar as causas da pobreza rural é
ressoar desentendimento histórico e interesses financeiros de
grandes grupos empresariais nacionais e estrangeiros
Percebo muitos leitores preocupados com a pobreza
nas áreas rurais, sobretudo quando massacradas por desalmados
colunistas que alertam, com vistas do alto e com lupa, onde o
agronegócio pode ser satânico e não.
Mesmo neste site de CartaCapital, no tema,
a imaginação comentarista voa e deixa entrever debates ideológicos
restritos à leitura de títulos e leads, sem ir ao texto completo.
É “da hora” opinar sobre assuntos complexos
em cinco linhas nas redes digitais, o que tem levado ao delírio ‘Seu
Pires’, personagem da coluna com excepcional profundidade
opinativa.
Particularizar as causas da pobreza rural,
deslocando-a dos vetores econômicos, políticos e sociais, que
fizeram desta Federação de Corporações um dos países mais
desiguais e injustos do planeta, é ressoar desentendimento
histórico, rotulagem de folhas e telas cotidianas, e interesses
financeiros de grandes grupos empresariais nacionais e estrangeiros.
Faz-se afundar em vala comum o que é simples
agregação de valores à produção de bens primários da
agropecuária. Da pitanga à soja. Das fazendas-empresas aos poucos
hectares da agricultura familiar. É dissociar benefícios
importantes de mazelas perfeitamente controláveis, acovardar-se
diante de resistências que caminham para a extinção.
Indígenas, quilombolas e assentados não são os
únicos grupos populacionais vivendo abaixo da linha de pobreza, no
Brasil. Contrapô-los ao agronegócio é demonizar uma só ponta do
tridente, a mais próxima, visível, e menos culpada.
Procurem demônios verdadeiros na drenagem de
grana para paraísos fiscais, ausência de tributação para grandes
fortunas, direitos subalternos não reconhecidos na Justiça,
infraestrutura deficiente se esvaindo entre propinas várias,
recursos naturais privatizados na bacia das almas, castas públicas
com rendimentos que fariam inveja no Império Romano.
Paremos por aqui. Às vezes, a lupa se torna chata
e repetitiva.
A pobreza rural no Brasil é não cidadã, uma
condição assegurada apenas para quem faz muita grana. Nos últimos
anos, relativa cidadania foi conquistada com empregos, correção de
salário mínimo e programas sociais. Mais do que isso, somente para
quem puser um pé no rentismo, este sim, gordo propulsor de riqueza.
Em “O mundo rural no Brasil do século 21”
(Embrapa/Unicamp, 2013), Henrique Dantas Neder, doutor em
economia e professor na Universidade Federal de Uberlândia, faz
interessante reflexão sobre “Trabalho e pobreza rural no Brasil”.
Trabalha sobre dados dos Censos do IBGE de 2000 e
2010. Nem sempre, porém, comparações estatísticas dizem tudo. No
seu ensaio, eu gostaria de ter visto menos planilhas e mais ‘Andanças
Capitais’. Ainda assim, conclusões valiosas podem ser tiradas do
trabalho.
A principal hipótese é boa e verdadeira, embora
de reparo óbvio nas últimas cinco décadas. Vamos ao autor:
“A atual estrutura produtiva (baseada em um
processo de especialização e concentração da produção em
atividades e regiões mais dinâmicas) vem absorvendo relativamente
cada vez menos mão de obra e tem se mostrado pouco inclusiva,
gerando uma forte polarização social no meio rural”.
É verdade. Como aqui já anotado, o modelo
agropecuário brasileiro, justificado pela ausência de um mercado
interno robusto, e causada por péssima distribuição de renda e
farta apropriação financeira da elite econômica, desenvolveu-se
orientado para o mercado externo.
Para isto, precisou ser competitivo, se
modernizar, e entre outros desdobramentos excluir contingentes de mão
de obra rural.
Continuemos com o autor, agora, numa segunda
hipótese:
“A especialização e a concentração produtiva
estão discriminando a força de trabalho rural agrícola, tendendo a
reduzir o numero de unidades produtivas familiares (...) levando em
consideração o esvaziamento populacional no campo, o qual pode ser
observado nas regiões em que ocorre maior adensamento de tal padrão
produtivo e, consequentemente, uma redução da pobreza (expulsando-a
para as áreas urbanas)”.
A conclusão deixa, antes de tudo, exposta a
distorção de não termos definição mais clara do segmento
agricultura familiar. Nem sempre a “expulsão para áreas urbanas”
ocorre com abandono da atividade rural, mas sim pelas atrações
sociais e superestruturais propiciadas em áreas urbanas.
Da mesma forma, isso não significa “redução
do número de unidades produtivas familiares”, mas sim procura de
apropriação técnica e educacional, vivência em sociedades mais
dinâmicas, facilidades trazidas por locomoção própria, em suma,
mudança domiciliar não exclui o retorno diário à fazenda, subir
numa plantadeira ou colheitadeira equipada com GPS e ar condicionado,
fazer o seu trabalho, assar uma costela com os parentes, e voltar
para dormir em sua casa, na cidade.
A “especialização e a concentração
produtiva” (leiam-se culturas como soja e cana-de-açúcar, na
intenção do autor) estão “discriminando a força de trabalho
rural agrícola”, ou fazendo essa força de trabalho buscar formas
de melhor viver e realizar seu trabalho no campo? Afinal, trata-se de
mão de obra predominantemente jovem.
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