A lição de método de Marx e o legado de Hobsbawm
Paul Valéry, no início de sua “Introdução ao Método de Leonardo da
Vinci”, disse que “o que fica de um homem é o que nos leva a pensar seu
nome e as obras que fazem desse nome um signo de admiração, de ódio ou
de indiferença”. A obra de Eric Hobsbawm é um signo de admiração e de
lições para o século XXI. Em um de seus últimos trabalhos, reafirmou sua
confiança política e metodológica na obra de Marx: “o liberalismo
econômico e o liberalismo político, sozinhos ou combinados, não
conseguem oferecer uma solução para os problemas do século XX. Mais uma
vez chegou a hora de levar Marx a sério”.
Em um de seus últimos trabalhos publicados no Brasil (Como Mudar o Mundo – Marx e o Marxismo.
Companhia das Letras, 2011), Eric Hobsbawm conta a seguinte história
para falar da força e da atualidade do pensamento de Marx:
“No
Cemitério Highgate estão sepultados dois pensadores do século XIX –
Karl Marx e Herbert Spencer – e, curiosamente, da tumba de um se avista o
outro. Quando ambos eram vivos, Herbert era considerado o Aristóteles
da época, enquanto Karl era um sujeito que morava nas ladeiras mais
baixas de Hampstead à custa do dinheiro do amigo [Engels]. Hoje ninguém
sabe que Spencer está sepultado ali, enquanto peregrinos idosos, vindos
do Japão e da Índia, visitam o túmulo de Karl Marx, e comunistas
exilados iranianos e iraquianos fazem questão de ser enterrados à sua
sombra” (Como Mudar o Mundo – Marx e o Marxismo, p. 14).
Marx
foi um autor que acompanhou a vida e a obra do historiador inglês, que
morreu na manhã desta segunda-feira (1º), aos 95 anos. O livro citado
acima é uma coletânea de textos que Hobsbawm escreveu sobre o assunto
entre 1956 e 2009, “um estudo sobre a evolução e o impacto póstumo do
pensamento de Karl Marx (e de seu amigo inseparável Friedrich Engels)”,
como ele próprio define. Nesta obra, o historiador defende uma tese
central: “Marx é hoje, mais uma vez, e com toda justiça, um pensador
para o século XXI”. Como uma das melhores formas de homenagear alguém
que partiu é manter acesa a memória das obras de uma vida, cabe falar um
pouco sobre essa tese que sintetiza uma parte importante das
preocupações e compromissos desse historiador extraordinário.
Paradoxalmente,
observou Hobsbawm, quem “redescobriu” Marx foram os capitalistas e não
os socialistas. O ano de 1998 foi emblemático neste processo. Neste ano,
comemorou-se o sesquicentenário do Manifesto Comunista. A data
coincidiu, ironicamente, com o início de uma forte turbulência na
economia internacional. Hobsbawm relata que ficou espantado quando, num
almoço mais ou menos na virada do século, George Soros perguntou o que
ele achava de Marx: “Por saber o quanto nossas ideias eram divergentes,
preferi evitar uma discussão e dei uma resposta ambígua. Esse homem,
disse Soros, descobriu uma coisa com relação ao capitalismo, há 150
anos, em que devemos prestar atenção”.
Alguns depois, em 2008, o
jornal londrino Financial Times estampou em sua manchete: “Capitalismo
em convulsão”. “Não podia mais haver dúvida de que Marx estava de volta
aos refletores. Enquanto o capitalismo mundial estiver passando por sua
mais grave crise desde o começo da década de 1930, será improvável que
Marx saia de cena. Por outro lado, o Marx do século XXI será, com
certeza, bem diferente do Marx do século XX”, advertiu Hobsbwam. Quais
seriam essas diferenças?
O Marx do século XXI
A
resposta a essa pergunta está intimamente ligada ao diagnóstico sobre
quais aspectos da análise de Marx continuam válidos e relevantes. O
historiador inglês destaca dois deles: (i) a análise da dinâmica global
do desenvolvimento econômico capitalista e de sua capacidade de destruir
tudo o que se antepuser a ele; (ii) a análise do mecanismo de
crescimento capitalista, por meio da geração de contradições internas,
levando a crises sucessivas e a uma crescente concentração econômica
numa economia cada vez mais globalizada.
E a força dessas
análises reside, em larga medida, no método empregado por Marx, um
método que rejeita a ideia de modelo e procura pensar o mundo como um
todo. Não se trata de um pensamento interdisciplinar no sentido
convencional, assinala Hobsbwam, mas de um pensamento que integra todas
as disciplinas, abordando os fenômenos sociais a partir de distintos
pontos de vista: econômicos, políticos, científicos e filosóficos. “Não
podemos prever as soluções dos problemas com que se defronta o mundo no
século XXI, mas, quem quiser solucioná-los, deverá fazer as perguntas de
Marx, mesmo que não queira aceitar as respostas dadas por seus vários
discípulos”, defende o historiador.
Marx tem, pois, uma lição
metodológica que é, de diferentes modos, destacada por Hobsbawm. No
método de Marx, não há lugar para determinismos, dogmas ou modelos
pré-concebidos que possam ser aplicados mecanicamente a qualquer momento
histórico. E esses pressupostos foram assumidos também por Hobsbawm em
seu trabalho como historiador. No final do artigo “Marx e o trabalhismo: o longo século”
(op.cit. pp. 358-375), ele reflete sobre os fracassos do século XX, os
problemas do século XXI, reafirmando sua confiança no método de análise
de Marx:
“Paradoxalmente, ambos os lados têm interesse em
voltar a um importante pensador cuja essência é a crítica do capitalismo
e dos economistas que não perceberam aonde levaria a globalização
capitalista, como ele previra em 1848. Mais uma vez é óbvio que as
operações do sistema econômico devem ser analisadas tanto
historicamente, como uma fase da história, e não como seu fim, quanto de
forma realista, isto é, em termos não de um equilíbrio de mercado
ideal, e sim de um mecanismo integrado que gera crises periódicas
capazes de transformar o sistema.” (op.cit. p.375)
Para
Hobsbawm, a crise atual mostra que o “mercado” não tem nenhuma resposta
para o “principal problema com que se defronta o século XXI”: “o fato de
que o crescimento econômico ilimitado e cada vez mais tecnológico, em
busca de lucros insustentáveis, produz riqueza global, mas às custas de
um fator de produção cada vez mais dispensável, o trabalho humano, e,
talvez convenha acrescentar, dos recursos naturais do planeta”. O
historiador conclui: “O liberalismo econômico e o liberalismo político,
sozinhos ou combinados, não conseguem oferecer uma solução para os
problemas do século XX. Mais uma vez chegou a hora de levar Marx a
sério”.
O que fica de um homem?
Paul Valéry, no início de sua formidável “Introdução ao Método de Leonardo da Vinci”
(publicado no Brasil pela editora 34), disse que “o que fica de um
homem é o que nos leva a pensar seu nome e as obras que fazem desse nome
um signo de admiração, de ódio ou de indiferença. Pensamos que ele
pensou, e podemos reencontrar entre suas obras esse pensamento que lhe é
dado por nós: podemos refazer esse pensamento à imagem do nosso”.
A
longa, profícua e aguda obra de Hobsbwam está aí para que nós
melhoremos o nosso próprio pensamento sobre a nossa história e,
sobretudo, sobre os desafios que o presente desfia a nossa frente. Não
há fim da história, o mercado não é um deus e os homens e mulheres
seguem lutando para sobreviver e levar a humanidade a um patamar melhor
do que o que está aí. As palavras, as reflexões e a vida de Eric
Hobsbwam seguirão a nossa disposição para deixar esse caminho um pouco
menos sombrio.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21008
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