O Bolsa Família e os gastadores de gente
Hoje
são 14 milhões de famílias beneficiadas em todo o país pelo Programa
Bolsa Família com direito a uma transferência média de US$ 35 por mês.
Aos olhos das nossas classes dominantes, antigas e modernas, o povo é o
que há de mais réles. Seu destino e suas aspirações não lhes interessa,
porque o povo, a gente comum, os trabalhadores, são tidos como uma mera
força de trabalho - um carvão humano- a ser desgastada na produção. É
preciso ter coragem de ver este fato porque só a partir dele, podemos
romper nossa condenação ao atraso e à pobreza, decorrentes de um
subdesenvolvimento de caráter autoperpetuante ...”(Darcy Ribeiro;1986)
Em
janeiro de 2003, quando o programa Fome Zero foi lançado como primeiro
ato do primeiro dia útil do governo Lula, havia um clima de terceiro
turno no país.
Inconsolável com a derrota de seu eterno candidato José Serra, a mídia conservadora mostrava as garras.
O
objetivo do cerco era acuar a gestão petista numa crise de desgoverno
para, ato contínuo, retificar o deslize das urnas de forma saneadora.
Da universidade não faltavam contribuições obsequiosas.
Intelectuais
de bico longo e ideias curtas pontificavam o despropósito de um
programa de combate à fome num país onde, dizia-se de forma derrisória,
esse era um problema menor.
O Fome Zero era o nome fantasia de uma ampla política de segurança alimentar.
Incluía
duas dezenas de políticas e ações, entre as quais a recuperação do
poder de compra do salário mínimo e sua extensão aos aposentados, a
expansão e o fortalecimento da merenda escolar, o fomento e o crédito à
agricultura familiar, estratégias de convivência com a seca no
semi-árido, reforma agrária e transferências condicionadas de renda aos
excluídos.
O Bolsa Família foi um pedaço de vertebra que ganhou vida própria e assumiu a linha de frente do guarda-chuva mais geral.
Supostamente
filiado ao focalismo do Banco Mundial –gastar estritamente com os
miseráveis e por tempo curto— desfrutou de um espaço maior de
tolerância, o que favoreceria a sua fulminante implantação.
Hoje são 14 milhões de famílias beneficiadas em todo país com direito a uma transferência média de US$ 35 por mês.
Ninguém mais mexe nesse vespeiro vigiado de perto por zelosas abelhas rainhas.
As mulheres detém a titularidade de 94% dos cartões de acesso aos saques.
Gerem, portanto, um benefício que contempla uma fatia da população equivalente a 52 milhões de brasileiros: 25% do país.
Quem são essas mulheres?
O
que pensam? O que pretendem do novo ciclo de crescimento brasileiro?
Que papel poderiam desempenhar na construção democrática de
alternativas à encruzilhada econômica atual?
São perguntas que não deveriam mais ser ignoradas depois de dez anos.
O
governo, com razão, substituiu o ‘clientelismo’ potencial em qualquer
programa social por relações impessoais no caso do Bolsa Família.
A
tecnologia do cartão magnético estabeleceu uma relação sanitária direta
entre o detentor do benefício e a política pública de Estado.
O cuidado é louvável, mas não deveria interditar o potencial participativo do programa.
Quando
foi criado o Fome Zero incluía um canal de aperfeiçoamento e
engajamento de seus participantes, rapidamente demonizado pelo
conservadorismo.
Os Comitês Gestores do Fome Zero eram compostos
majoritariamente por representantes das famílias beneficiadas,
aglutinadas em núcleos municipais.
A virulenta oposição de
prefeitos e coronéis à emergência do novo poder local levaria
rapidamente à extinção desse braço participativo.
Se o êxito do
programa dá razão ao recuo pragmático feito há dez anos, hoje a ausência
de um fórum democrático para as 14 milhões de famílias soa como uma
aberração política.
O destino dessas famílias está no centro das escolhas do desenvolvimento brasileiro.
E vice versa.
Não apenas isso.
Esse entrelaçamento é a pedra mais incômoda no sapato da agenda conservadora nos dias que correm.
O desafio é adequar o invólucro ao novo conteúdo que empurra a velha embalagem com os cotovelos em alça.
A
opção do conservadorismo é devolver a pasta de dente ao tubo com a
alavanca de um arrocho disfarçado de responsabilidade fiscal.
A
tentativa progressista até agora consiste em esticar ao máximo as linhas
de passagem, dando tempo ao tempo para acomodação da crise mundial e a
materialização de investimentos e retornos, como os do PAC e os do
pré-sal.
Não há receita pronta.
Quem dá coerência macroeconômica ao desenvolvimento é a correlação de forças da sociedade em cada época.
Quanto
pode avançar a arrecadação fiscal sobre o estoque da riqueza para
acelerar o calendário dos investimentos requeridos pelo país?
Qual
a chance de se fixar uma taxa de câmbio favorável às exportações, sem
anular o poder de compra popular com uma guinada devastadora nos preços
relativos?
Estados fragilizados por privatizações, déficits
externos asfixiantes, obsolescência industrial, atrofia fiscal ,
dispersão de interesses e de energia política são ingredientes
incompatíveis com um ciclo de investimentos à altura do novo mercado
interno brasileiro.
A hegemonia capaz de acomodar esse conjunto requer um misto de força e consentimento ancorado em um projeto crível de futuro.
Isso não se faz sem sujeito histórico correspondente, dotado de organização mínima que institucionalize seus interesses.
A
ninguém ocorre fazer de 14 milhões de famílias do Bolsa Família uma
correia de transmissão de conveniências de governos. Sejam eles quais
forem.
A construção do Estado social brasileiro, porém, não
avançará muito mais se menosprezar os interesses catalisados pelas
políticas populares dos últimos dez anos.
Dificilmente os comitês gestores do Fome Zero serão ressuscitados.
Mas a meta original de dar voz e espaço na condução do programa aos seus principais interessados pode e deve ser recuperada.
Uma
Conferência Nacional das mulheres que fazem do Brasil a referência
mundial na luta contra a fome e a miséria, por certo adicionaria avanços
não apenas ao programa.
Mas também à hegemonia social de que o
Brasil necessita para distanciar cada vez mais a sua agenda de
desenvolvimento da lógica regressiva dos ‘gastadores de gente’, de que
falava o desassombro do saudoso Darcy Ribeiro.
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Editorial/O-Bolsa-Familia-e-os-gastadores-de-gente/29383
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